Wednesday, February 20, 2008

queda livre

há um muro que não me deixa olhar para o outro lado
gosto tanto do outro lado  por não gostar deste  que queria um muro maior para me obrigar a ficar deste lado
[só mais um pouco
pelo menos para me dar tempo de ver bem onde estou e de sentir a frescura do musgo debaixo dos pés
mas os muros altos são baixos só para mim
e salto com a dificuldade de quem finge
e ultrapasso mais uma barreira intransponível com o sacrifício de quem mente 
e já estou deste lado
e já nem me lembro do que ficou para trás
nem me quero lembrar
era pequenino e incipiente  quase tão desinteressante como o sítio que pouso agora
este pouso que nunca se repete  para não ser um repouso
e o muro desta vez já nem alto é para disfarçar
é uma sebezinha anã e rota que eu sobrevoo rastejando 
e já estou em outro sítio 
e o anterior já nem me lembro
já nem me interessa 
já nem quero que exista  
e onde estou também não dá
e agora já nem muros
nem sebes
nem degraus
nem solavancos
nem lombas
nem nada
tudo a eito
tudo em frente  sem oposição
e então por não haver mais nada a fazer corro em frente
e para os lados
e para cima
e para baixo
e agora o caminho é uma rampa que desce cada vez mais íngreme
e agora já nem corro
deslizo
escorrego
caio
caio
grito     
e cada grito é mais um salto
e cada choro é mais um sítio
e agora vou em queda livre e já não me lembro do que ficou para trás
mas tenho saudades de quando tudo me custava
tenho tristeza de não sentir nos ossos a dor das pequenas conquistas
agora as conquistas são eternas e findas antes do começo
e o pior é que os outros  aqueles por quem grito  ficaram para trás
e com a fome de chegar tão longe não deixei migalhas para que me encontrassem
e nesta corrida em queda livre sinto os pulmões a encherem-se de ar
o coração a bater mais forte
a boca a deformar-se com a velocidade
o sangue a ficar azul com o frio do vento que me escarpa os ouvidos como um montanhista que cai porque se desiludiu com o
[pico
e tenho o corpo gelado e a alma também  
mas as ideias frias continuam lá na cabeça que funciona quando o coração já não bate
e podia implorar por uma bóia mas não caio para a água
e podia pedir uma corda mas já desaprendi o regresso
e podia viver mas já não sei  esqueci-me  acho que ficou atrás de um muro qualquer
acho que viver ficou atrás do decimo sétimo muro   um particularmente alto a fingir e que precisava de uma
[ajudinha
e agora lembro-me como o fiz 
peguei na vontade de viver e coloquei-a no chão
e como a vontade era muita e tinha uma área muito grande pus-lhe uma mesa em cima 
e em cima da mesa um banco
e ainda outro mais pequeno
e ainda outro mais pequeno
e escalei até ao cimo do muro   
e lá em cima pensei   depois volto para a buscar
depois torno a buscar a vontade mas nunca mais
e agora já vão tantos anos luz  
tantos milénios  
tantos séculos
tantos dias
tantos nanossegundos correndo desesperadamente para não sei bem onde
fazer não sei bem o quê  com não sei quem  sozinho
que já não sei voltar a buscá-la
que já não tenho vontade de voltar
já não tenho vontade de voltar
porque a vontade ficou atrás
e a cair para o infinito lanço num último gesto os braços
as mãos
e os dedos tentando resgatar a vida  
mas os dedos já mirrados como os do menino que ficou tempo demais na banheira não [conseguem agarrar
não têm forças para agarrar
não têm vontade de agarrar
e morro
caindo 
sempre
sem nunca chegar ao chão

JOAO NEGREIROS

1 comment:

Toupas said...

=) ... sem comentarios!!!!! percebo-te